sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 24/08/2002

UM POUCO DE NOSTALGIA
Rachel de Queiroz
Afinal, se me dão licença, quem passa dos 90 direito a algum saudosismo. É que, olhando o mar, lembrei dos bons tempos dos navios, quando só se viajava pelas costas do Brasil nos Itas (os decantados Itas do Norte) e também os menos charmosos navios do Loide. Companhia Nacional de Navegação Costeira, chamavam-se oficialmente os Itas. E recebiam todos os barcos da frota esse nome de Ita porque o dono da Companhia se chamava Laje, e laje é pedra, e pedra em tupi é ita. Tinha esse magnata Laje outro motivo de celebridade:
Capturara o amor da maior contralto vivente, Gabriela Benzansoni; casou com ela e deu-lhe por menagem a mansão dentro daquele parque próximo ao Jardim Botânico, retirando-a dos palcos do mundo. A Bezansoni ficou cantando só para ele.
Mas veio a guerra e os submarinos alemães torpedearam toda a frota Laje, junto com os navios do Loide. E o pouco que não foi para o fundo do mar sucateou por aí, acabou.
Aliás, já nos deram fim a todos os transportes que não sejam aéreos:
acabaram os navios, acabaram os trens. Ficaram os caminhões e ônibus, já todos obsoletos, expulsos pelos aviões, quer de gente, quer de carga. E naqueles brutos airbus nos sentimos mesmo como carga, como frangos num granjal.
Mas voltando aos Itas: cada viagem neles era uma glória. Navio do Norte para o Sul (ainda se falava pouco em Nordeste) era para cada família como uma estação de águas, uma semana em Caxambu ou Lambari. Preparava-se o enxoval da viagem, guardado nas grandes malas de camarote: os vestidos para o dia, de linho e com gola de marinheiro, e os de noite, de seda, com manga cavada.
O navio todo era um grande playground, onde se brincava em jogos de convés (ainda não havia piscinas), se almoçava e se jantava ao som de orquestra, em boa companhia. Grande honra era sentar à mesa do comandante. Dançava-se depois do jantar, toda noite sem falta, até mesmo quando o navio ancorava durante dias, em Areia Branca, para carregar sal.
A vida de bordo era sempre uma festa. Onde, acima de tudo, se namorava.
Havia para isso os estudantes que faziam curso na Bahia e no Rio; os antigos caixeiros-viajantes que já então se diziam "representantes de firmas"; e jovens políticos, e moços ricos nos camarotes de luxo. Contudo, os mais disputados dos galãs marítimos eram os próprios oficiais de bordo, com o seu charme de homens do mar, que a gente chamava de "cisnes brancos", seu andar macio e silencioso no solado de borracha: pilotos, imediato, até radiotelegrafistas. E as meninas ficavam injuriadas se descobriam que o médico era gordo ou notoriamente casado. O comandante era um caso especial.
Fazendo o gênero "velho lobo-do-mar", galante ou retraído mas sempre envolto, para as moças no halo que lhe dava a farda branca imaculada, o quepe agaloado de ouro, a autoridade de rei dentro do navio.
Cada porto era um evento especial: vinham os amigos, os parentes, receber os passageiros, levá-los a almoçar e passear pela cidade.
E a chegada ao Rio era a coroa da travessia. Das alturas de Cabo Frio começava a expectativa. Quase sempre o navio entrava na barra pela manhã com a Guanabara toda envolta em brumas. Passavam-se os fortes, passava o Mosteiro de São Bento, e então se atracava no cais, a orquestra de bordo tocando a Cidade Maravilhosa. E a gente trajando o tailleur feito especialmente para o desembarque. Os tios em grupo se agitavam lá embaixo e quase toda menina tinha um primo especial para lhe acenar.
Esquecidos ficavam os belos amores de bordo. Como vêem, era muito bom, naquele tempo, tomar um Ita no Norte.

Carlos Gomes

Carlos Gomes
Europa se curva ao autor de "O Guarani"
Colaboração para a Folha Online

Foi com Carlos Gomes que a arte brasileira, pela primeira vez na história, conseguiu atravessar o Atlântico e foi aplaudida na Europa. Nascido em 11 de julho de 1836, na pequena Vila Real de São Carlos, atual Campinas (SP), o pequeno Tonico, como era chamado pelos familiares, era filho de Manoel José Gomes, mestre de música e banda. Aos dez anos, com o auxílio do pai, aprendeu a tocar diversos instrumentos.

Quando adolescente, Carlos Gomes trabalhava em uma alfaiataria, costurando paletós e calças. No tempo livre, aproveitava para aperfeiçoar os estudos musicais. Já nessa época, apresentava-se com o pai e o irmão mais velho, Pedro Sant'Anna Gomes, nos bailes e pequenos concertos da cidade. Ele era uma espécie de "coringa" da banda. Como sabia tocar vários instrumentos, podia assumir qualquer posição do grupo.

Desde este período, Carlos Gomes já compunha canções religiosas e modinhas românticas - que sempre estiveram presentes em seu repertório. Em 1859, partiu em turnê com o irmão e o amigo Henrique Luiz Levy. Ao chegar na capital paulista, ficou amigo dos estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Em homenagem aos novos companheiros, compôs o Hino Acadêmico e a modinha Quem sabe?, obras que o tornaram conhecido entre as repúblicas estudantis.

No ano seguinte, com o objetivo de consolidar sua formação musical, mudou-se para o Rio de Janeiro, contra a vontade do pai, para iniciar os estudos no conservatório da cidade. "Uma idéia fixa me acompanha como o meu destino! Tenho culpa, porventura, por tal cousa, se foi vossemecê que me deu o gosto pela arte a que me dediquei e se seus esforços e sacrifícios fizeram-me ganhar ambição de glórias futuras?", escreveu ao pai, aflito e cheio de remorso por tê-lo contrariado. "Não me culpe pelo passo que dei hoje. [...] Nada mais lhe posso dizer nesta ocasião, mas afirmo a que as minhas intenções são puras e espero desassossegado a sua benção e o seu perdão", completou.

No Rio, foi apresentado a D. Pedro 2º, que se tornaria seu admirador e mecenas. O imperador o enviou a Milão para que aprimorasse os conhecimentos em música. Anos depois, em 1870, Carlos Gomes iniciou-se a brilhante carreira do compositor, ao apresentar, no Teatro Alla Scalla da cidade italiana, a ópera O Guarani, baseada no romance homônimo de José de Alencar. A obra rodou o mundo.

Foi nesta época que conheceu a italiana Adelina Conte Peri, por quem se apaixonou. Pianista e professora, ela era colega de conservatório do compositor. Em 1871, casaram-se. Embora a união tenha sido um tanto quanto conturbada, tiveram cinco filhos --três morreram prematuramente.

Com a morte de Mário, um dos filhos do casal, o compositor entrou em profunda depressão e mudou-se para Gênova. "Mário, subindo ao céu, aos cinco anos, me deixou na terra infeliz para toda a vida", escreveu o músico.

A partir desde momento, Carlos Gomes endividou-se, passou por grandes dificuldades financeiras, sofreu várias crises nervosas e viciou-se em ópio. Há quem diga que manteve casos amorosos com várias mulheres, o que justificaria a separação com Adelina, em 1885.

Ao longo da vida, Carlos Gomes esteve dividido entre duas pátrias, duas nacionalidades. Ao adotar a Itália como segunda nação, o compositor foi duramente hostilizado pelos brasileiros, que o viam como um aproveitador do dinheiro público, já que tinha como "mecenas" o imperador D. Pedro 2º. Em contrapartida, os italianos o enxergavam como um mercenário, pois acreditavam que ele produzia arte com fins comerciais --O Guarani, inclusive, foi vendido a um editor.

Um ano antes de morrer, o compositor foi convidado para dirigir o Conservatório do Pará. Mesmo doente, aceitou o convite. Após três meses no cargo, Carlos Gomes morreu em Belém, no dia 16 de setembro de 1896, aos 60 anos.